No dia 26 de março de 2020, o Juízo Federal da 21ª Vara da Seção Judiciária do Distrito Federal (SJDF) concedeu tutela liminar requerida por pessoa jurídica sediada na cidade de Curitiba-PR, com filiais na cidade sede, bem como em Ponta Grossa-PR e São Paulo-SP, para autorizar, em caráter excepcional e pelo prazo de três meses, o diferimento do recolhimento de tributos federais (IRPJ, CSLL, PIS e COFINS).
Na referida decisão, proferida na “Ação Declaratória com Pedido de Tutela de Urgência Cautelar” distribuída sob o nº 1016660-71.2020.4.01.3400, o juízo entendeu que a pretensão autoral deduzida nos autos “se amoldaria na figura da moratória, regulada, em âmbito geral, no art. 152 e seguintes do Código Tributário Nacional (CTN)”. E, nesse sentir, partiu da hipótese legal autorizativa de suspensão da exigibilidade do crédito tributário inserida no art. 151, inciso I, do CTN, para tecer sua fundamentação.
A par dos argumentos de cunho fático (“eclosão do estado de calamidade sanitária que vive o Brasil e o mundo por conta do COVID-19”), o suporte jurídico utilizado pelo eminente Juiz Federal Rolando Valcir Spanholo para chegar à conclusão dada foi no sentido de que: i) diante do excepcional momento por que passa a vida e a economia do povo brasileiro, a demanda proposta refugiria de uma pretensão “meramente de Direito Tributário”; ii) “por analogia, incidiria a “Teoria do Fato do Príncipe”, pressupondo que a limitação financeira narrada pela parte autora estaria “calcada em atos e ações deflagrados pela própria Administração Pública”, bem como que a relação tributária mantida entre o Fisco e o contribuinte se assemelharia a um “contrato de adesão”.
Essa decisão, inédita no mundo jurídico, por aplicar a Teoria do Fato do Príncipe no âmbito de relação jurídica tributária (sem contrato administrativo), embora homenageie a razoabilidade e o dever de integralização da norma tributária, precisa ser vista com cautelas (jurídicas, principalmente).
É sabido que o princípio da estrita legalidade ou da reserva legal serve de alicerce para o Estado Democrático de Direito. Nesse contexto, e observando-se o preceito de que “todo o poder emana do povo” (art. 1º, parágrafo único, da CF), surge a obrigação de pagar tributos considerados justos ou, noutros termos, que sejam regularmente criados, por meio de lei ordinária ou complementar, conforme o caso, mediante processo legislativo idôneo, com a participação legítima dos parlamentares eleitos pelos cidadãos.
Hugo de Brito Machado (Curso de Direito Tributário, 25. ed., São Paulo: Malheiros, 2004, p. 51), afirma que a lei é “manifestação legítima da vontade do povo” (por meio de seus representantes nos parlamentos) e, portanto, dizer que um tributo é instituído mediante lei formal significa dizer que é “consentido pelo povo”, por quem entrega parte de seu patrimônio ao Estado para fomentar a satisfação das necessidades coletivas.
O CTN trata da legalidade estrita no art. 97, o qual estabelece quais as matérias são reservadas à lei formal. São elas: instituição e extinção de tributos; majoração de tributos ou redução; definição do fato gerador da obrigação tributária principal; fixação da alíquota do tributo e da sua base de cálculo; a cominação de penalidades para as ações ou omissões contrárias a seus dispositivos, ou para outras infrações nela definidas; as hipóteses de exclusão, suspensão e extinção de créditos tributários, ou de dispensa ou redução de penalidades.
Existem algumas ressalvas, previstas nesse mesmo diploma legal, no sentido de autorizar que outro ato normativo, por exemplo, emanado pelo Poder Executivo (decreto), também seja meio hábil para tratar de tais matérias. Um exemplo é a possibilidade de que o mencionado poder modifique as alíquotas ou bases de cálculo do imposto, a fim de ajustá-lo aos objetivos da política cambial e do comércio exterior (art. 21, do CTN). Porém, é de se lembrar que até mesmo nessa aparente exceção à regra da legalidade o legislador se preocupou em destacar, expressamente, a necessidade de respeito às condições e limites estabelecidos em lei.
Um dos limites legais que precisa ser observado é o de que a situação descrita em lei e definida pelo legislador (hipótese de incidência), dentre os vários fatos do mundo fenomênico, para que quando se concretize gere a obrigação tributária, cujos elementos precisam estar delimitados no texto da lei.
O tributo é constituído por elementos essenciais que são seus sujeitos passivos, sujeitos ativos, bases de cálculo e alíquotas. A partir disso, e exercendo a competência constitucional tributária, é que a pessoa política expede norma jurídica geral e abstrata, desenhando nela os elementos que auxiliam o Fisco (ou o ente responsável) na determinação, individual e concreta, do modo como deve ser feita a cobrança e arrecadação do tributo.
A fixação do prazo para recolhimento, embora não seja elemento estrutural do tributo, possui relevância na obrigação tributária e, a depender do contexto e da forma como é fixado o tempo do pagamento da exação, pode ser que acarrete consequências prejudiciais para o contribuinte ou para o erário.
Então, quer dizer que o pronunciamento judicial ora em cotejo, ao conceder tutela liminar para “diferir” o recolhimento de tributos federais, afastou a regra do art. 152 (reserva legal) para a concessão de “moratória”, mitigando o princípio da legalidade tributária?
Bem, primeiro, cabe anotar que a pretensão autoral consistia em obter “tutela de urgência cautelar”, a fim de que fosse determinada a suspensão, por noventa dias, da exigibilidade dos créditos federais relativos às obrigações tributárias surgidas nos meses de março, abril e maio de 2020, o que significa que a União não poderia, no período, promover a inclusão da autora no Cadastro Informativo de Créditos não Quitados do Setor Público Federal (CADIN), bem como deveria expedir certidão positiva com efeitos de negativa relativa aos débitos dos tributos mencionados supra.
A ordem judicial, porém, lançou mão do instituto da “moratória tributária” para apreciar a demanda que lhe foi posta, ao invés de amoldar a hipótese ao disposto no art. 151, inciso V, do CTN (suspensão de exigibilidade do crédito tributário por meio de decisão judicial). Também foi aplicada, ineditamente, a figura do “Fato do Príncipe” ao caso, partindo do pressuposto de que a relação entre o Fisco e contribuinte se assemelharia a um “autêntico contrato de adesão” (penso que para suprir a falta de contrato administrativo).
Não, não se trata aqui de mitigação ao princípio da legalidade. Apesar de ter mencionado o instituto da moratória, o que se percebe, afinal, é que o eminente julgador usou de analogia para suprir lacuna legislativa e dar solução que entendeu mais "justa" ao caso.
É de se reconhecer que há certa razoabilidade na decisão, especialmente porque invoca preceitos constitucionais que regem a República Federativa do Brasil (insculpidos nos arts. 1º, 3º, 5º, 6º e 7º da Constituição Federal). Todavia, no contexto democrático e à luz dos princípios constitucionais que regem a relação entre o Fisco e contribuinte, infere-se que eventual mitigação ao princípio da legalidade deve respeitar, especialmente, o princípio da segurança jurídica e atentar para as disposições constitucionais sobre competência tributária, a fim de evitar que se recaia no campo da ilegalidade ou da inconstitucionalidade.
Prevejo muitas discussões e reflexões jurídicas a partir não só desse pronunciamento judicial específico, mas diante de toda a repercussão da pandemia Covid-19.
Até a presente data, encontra-se pendente de apreciação recurso de Embargos de Declaração oposto pela Procuradoria da Fazenda Nacional, no qual é suscitado omissão quanto a litispendência da ação com mandado de segurança impetrado pela mesma empresa – nº 5015579.02.2020.4.04.7000) e requerida a extinção do processo sem resolução do mérito (art. 485, inciso V c/c art. 486, § 1º, ambos do CPC)..